sábado, 4 de março de 2017

BIOÉTICA: Surgimento, complexidade e desafios para uma sociedade plural

BIOÉTICA:
Surgimento, complexidade e desafios para uma sociedade plural[1]

Jaqueline Balthazar Silva[2]

            Apesar da Bioética ser reconhecida como uma ciência nova, a reflexão bioética sempre existiu em todas as sociedades, embora nem sempre tenha sido assim chamada. Todas as sociedades e culturas têm suas reflexões éticas, até mesmo aquelas que não possuem uma língua escrita. Os códigos éticos são criados dentro das comunidades, e podem variar conforme a cultura. Isso significa dizer que não é necessário haver uma legislação escrita para que as comunidades tenham suas próprias normas de conduta, assim sendo, comunidades indígenas, aborígenes, autoctones possuem regras de convivência que devem ser respeitadas. Algumas dessas comunidades passam suas normas apenas por tradição oral.
            Mais tarde um pouco, encontramos também na filosofia grega que Hipócrates já havia criado um código de ética médico[3]. Por isso, a reflexão ética precede em muito o surgimento da bioética como uma ciência sistematizada.
           
1.    O Surgimento

A bioética surge num contexto de bastante questionamentos éticos em relação aos avanços científicos do início do século XX. Tem como palco principal o julgamento de Nuremberg.
O contexto se deu a partir do final da II Guerra Mundial em que os aliados vencedores decidiram, em uma conferência realizada na Inglaterra, perseguir e punir os vencidos. Foi a primeira vez que várias nações juntas realizam um julgamento em conjunto, no qual as pessoas foram julgadas por[4]:
Crimes de conspiração: execução de planos comuns destinados a tomar o poder e instituir um regime totalitário, com o objetivo deliberado de efetuar uma guerra de agressão;
Crimes contra a paz administrar, preparar, incitar e dar continuidade à guerra;
Crimes de Guerra - além de infrações aos costumes e leis de guerra, maus-tratos, homicídios, trabalhos forçados, dentre outros que não estejam ligados à exigências militares;
Crimes contra a humanidade, conhecido como holocausto, a primeira vez que acontece, sendo assim uma novidade no entendimento do direito internacional.
As quatro potências aliadas (EUA, França, Reino Unido e União Soviética) se reuniram em Londres (Inglaterra) e concordaram com a proposta de perseguir e punir os envolvidos.
É muito importante destacar que, apesar de ter sido de fundamental importância, o Tribunal de Nuremberg julgou os crimes apenas pelo ponto de vista dos vencedores, sendo que estes mesmos não foram submetidos a nenhum tipo de julgamento, como se os mesmos não tivessem também cometido crimes.

2.    Primeiro problema reconhecidamente bioético:

O problema de diálise no Seattle Artificial Kidney Center, em que apesar de haver 9 pacientes precisando do equipamento de diálise, só havia um aparelho. O Conflito se dá a partir do momento em que é preciso estabelecer critérios para definir quem teria a preferência, pois não seria possível a utilização para todos, o tratamento ainda estava sendo testado, as seguradoras não queriam assumir o pagamento de um tratamento experimental, por isso, surge, pela primeira vez um Comitê de Bioética, para avaliar e decidir os critérios para a utilização. Esse comitê era composto por 7 pessoas leigas, não médicos, mas filósofos, teólogos e representantes da sociedade civil que analisavam caso a caso de acordo com critérios de mérito social: sexo, idade, status conjugal, nº de dependentes, escolaridade, ocupação, potencial futuro[5]. A criação de um comitê abalou a relação médico-paciente.
            Em 1966 Henry Beecher abalou o mundo ao publicar um artigo no New England Journal of Medicine em que denunciou diversos crimes cometidos pelos EUA, que, muito antes do julgamento de Nuremberg já fazia experimentos com seres humanos, e, pior ainda, muito depois, continuava a fazer, o que não deixa de revelar a hipocrisia por traz daqueles que se julgavam superiores por que se consideravam “vencedores”, compreendendo a lógica de que a história é contada pelo prisma dos vencedores, o resto será esquecido.
Casos:
a)    Willowbrook State School (New York): 1956 – 1970 (14 anos) – escola para crianças com “retardo mental”.[6] Objetivo da experiência: verificar a eficácia da profilaxia contra a hepatite. Aproximadamente 700 crianças foram infectadas propositalmente com cepas do vírus, aos pais coube assinar um termo de consentimento que, caso não fosse assinado, as crianças não seriam admitidas na escola. Considerando que na época era muito difícil encontrar escolas para crianças especiais, a maioria dos pais consentiam.
b)    Jewish Chronic Disease Hospital (Brooklin): 1963 – injetadas células tumorais em 22 pacientes anciãos, sem o consentimento;
c)    Tuskegee Syphilis Study (Tuskegee):1932 – 1972 (40 anos) – 600 homens negros. Objetivo, determinar os efeitos do curso natural da sífilis quando não tratada. 399 portadores foram deixados sem tratamento e sem informação sobre seu estado de saúde. Os demais 201 não possuíam a doença eram considerados grupo controle. Os homens foram privados de tratamento mesmo depois da invenção da penicilina em 1940. Esse caso foi denunciado em 1972 e a pesquisa só parou por causa da denúncia veinculada na revista norte-americana Washington Star. Depois desse caso uma comissão nomeada pelo Departamento de Saúde relatou que o desenvolvimento científico não mais poderia ser regulado apenas pela comunidade científica nem se sobrepor aos direitos individuaos.
É importante ressaltar que a comunidade científica acreditava no “darwinismo social” que determinava a discriminação de raças e alegava que algumas raças eram superiores a outras e, por isso, as raças inferiores “podiam” ser submetidas aos experimentos em benefício da construção de parâmetros eficientes para a saúde. Por isso, o conceito de dignidade humana não é um valor para todos os humanos, o que permite a “tentação utilitarista” com o pretexto de promover um bem futuro para a maioria, apesar de causar dano a uma minoria (que para eles era insignificante, já que muitos não consideravam negros, idosos e deficientes como pessoas).

3.    Declaração de Helsinque (1964)

Adoção de princípios ético-científicos na formulação de protocolos de pesquisas com seres humanos, sendo que estas só poderiam ser conduzidas por cientistas preparados. Reconhece o princípio da Autonomia do sujeito da pesquisa. Esse documento foi atualizado 6 vezes até 2008 e, no Brasil foi a base para a resolução 196/96 que tem um foco no controle social e foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), juntamente com o Relatório Belmont (1974 – 1978), apesar deste não ser considerado um documento internacional, apresenta relevância mundial e bioética, pois, revela a pertinência de questões éticas no financiamento das pesquisas. Esse documento acrescenta ao princípio da autonomia outros dois princípios: o da beneficência e o da justiça, que mais tarde se tornam os princípios da bioética Principialista.
      Em 2012 a resolução 166/96 foi substituída pela resolução 466/12 depois de uma revisão, porém, o objetivo principal da resolução foi mantido: regulamentar a experimentação com seres humanos com base na autonomia e no consentimento livre e esclarecido (TCLE). Algumas das alterações apresentadas na sexta versão da declaração de Helsinque foram acrescentadas na nova resolução. Questões como: assegurar aos participantes da pesquisa o acesso aos melhores métodos identificados pelo estudo; o uso de placebo aceitável desde que o risco de danos não seja considerado sério;
      De acordo com Kottow (2009) O princípio da Autonomia não pode ser confundido com exercício da autonomia, pois é preciso considerar uma variedade de fatores envolvidos como: a capacidade de discernimento e a vulnerabilidade da família e da pessoa envolvida com a pesquisa. Hipoteticamente pode-se pensar no caso de uma mãe que depende da internação do filho e recebe uma proposta para participar da pesquisa como condição para conseguir a vaga ou da promessa de que uma determinada medicação em estudo possa ser a cura para uma doença. Quem, numa situação de vulnerabilidade não estaria com a autonomia comprometida diante de uma situação como está?





[1] Texto elaborado para palestra sobre Bioética para o curso da Pastoral Familiar em julho de 2015.
[2] Mestre em Bioética pela PUCPR, Especialista em Ética e Educação pea FACSUL/Centro Redentorista, Licenciada em Letras Português-Inglês (UTP), Bacharel em Teologia (PUCPR) assessora da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Curitiba e membro do Núcleo Arquidiocesano de Bioética (NAB).
[3] É importante destacar que o médico do mundo de Hipócrates não era o mesmo que concebemos hoje na sociedade ocidental. Eram aqueles que tratavam e curavam os enfermos com o conhecimento empírico adquirido pela observação de sintomas e o diagnóstico se baseava na ideia de humores. Não havia um médico com curso superior como se concebe hoje. As pessoas aprendiam a lidar com as plantas e identificavam alguns efeitos curativos, assim como os curandeiros.
[4] Leia mais: http://jus.com.br/artigos/23380/notas-criticas-sobre-o-tribunal-militar-internacional-de-nuremberg#ixzz3eApDJoJB.
[5] Embora hoje possa parecer assustador avaliar pelo potencial de futuro, na época, foi um avanço porque considerou a questão social e as perspectivas de recuperação, pois, seria de fundamental importância garantir que a escolha teria bom resultado, por isso, a perspectiva futura era considerada como uma garantia de sucesso na definição de quem utilizaria o aparelho. Não poderia haver perdas.
[6] Expressão utilizada na época.

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