BIOÉTICA:
Surgimento,
complexidade e desafios para uma sociedade plural[1]
Jaqueline Balthazar Silva[2]
Apesar
da Bioética ser reconhecida como uma ciência nova, a reflexão bioética sempre
existiu em todas as sociedades, embora nem sempre tenha sido assim chamada.
Todas as sociedades e culturas têm suas reflexões éticas, até mesmo aquelas que
não possuem uma língua escrita. Os códigos éticos são criados dentro das
comunidades, e podem variar conforme a cultura. Isso significa dizer que não é
necessário haver uma legislação escrita para que as comunidades tenham suas
próprias normas de conduta, assim sendo, comunidades indígenas, aborígenes,
autoctones possuem regras de convivência que devem ser respeitadas. Algumas
dessas comunidades passam suas normas apenas por tradição oral.
Mais
tarde um pouco, encontramos também na filosofia grega que Hipócrates já havia
criado um código de ética médico[3]. Por
isso, a reflexão ética precede em muito o surgimento da bioética como uma
ciência sistematizada.
1. O Surgimento
A bioética surge num contexto de bastante questionamentos
éticos em relação aos avanços científicos do início do século XX. Tem como
palco principal o julgamento de Nuremberg.
O contexto se deu a partir do final da II Guerra Mundial
em que os aliados vencedores decidiram, em uma conferência realizada na
Inglaterra, perseguir e punir os
vencidos. Foi a primeira vez que várias nações juntas realizam um julgamento em
conjunto, no qual as pessoas foram julgadas por[4]:
Crimes de conspiração:
execução de planos comuns destinados a tomar o poder e instituir um regime
totalitário, com o objetivo deliberado de efetuar uma guerra de agressão;
Crimes contra a paz
administrar, preparar, incitar e dar continuidade à guerra;
Crimes de Guerra -
além de infrações aos costumes e leis de guerra, maus-tratos, homicídios,
trabalhos forçados, dentre outros que não estejam ligados à exigências
militares;
Crimes contra a
humanidade, conhecido como holocausto,
a primeira vez que acontece, sendo assim uma
novidade no entendimento do direito internacional.
As quatro potências aliadas (EUA, França, Reino Unido e
União Soviética) se reuniram em Londres (Inglaterra) e concordaram com a
proposta de perseguir e punir os envolvidos.
É muito importante destacar que, apesar de ter sido de
fundamental importância, o Tribunal de Nuremberg julgou os crimes apenas pelo
ponto de vista dos vencedores, sendo que estes mesmos não foram submetidos a
nenhum tipo de julgamento, como se os mesmos não tivessem também cometido
crimes.
2.
Primeiro
problema reconhecidamente bioético:
O problema de diálise no Seattle Artificial Kidney Center,
em que apesar de haver 9 pacientes precisando do equipamento de diálise, só
havia um aparelho. O Conflito se dá a partir do momento em que é preciso
estabelecer critérios para definir quem teria a preferência, pois não seria
possível a utilização para todos, o tratamento ainda estava sendo testado, as
seguradoras não queriam assumir o pagamento de um tratamento experimental, por
isso, surge, pela primeira vez um Comitê de Bioética, para avaliar e decidir os
critérios para a utilização. Esse comitê era composto por 7 pessoas leigas, não
médicos, mas filósofos, teólogos e representantes da sociedade civil que
analisavam caso a caso de acordo com critérios de mérito social: sexo, idade,
status conjugal, nº de dependentes, escolaridade, ocupação, potencial futuro[5]. A
criação de um comitê abalou a relação médico-paciente.
Em 1966
Henry Beecher abalou o mundo ao publicar um artigo no New England Journal of
Medicine em que denunciou diversos crimes cometidos pelos EUA, que, muito antes
do julgamento de Nuremberg já fazia experimentos com seres humanos, e, pior
ainda, muito depois, continuava a fazer, o que não deixa de revelar a
hipocrisia por traz daqueles que se julgavam superiores por que se consideravam
“vencedores”, compreendendo a lógica de que a história é contada pelo prisma
dos vencedores, o resto será esquecido.
Casos:
a) Willowbrook
State School (New York): 1956 – 1970 (14 anos) – escola para crianças com
“retardo mental”.[6]
Objetivo da experiência: verificar a eficácia da profilaxia contra a hepatite.
Aproximadamente 700 crianças foram infectadas propositalmente com cepas do
vírus, aos pais coube assinar um termo de consentimento que, caso não fosse
assinado, as crianças não seriam admitidas na escola. Considerando que na época
era muito difícil encontrar escolas para crianças especiais, a maioria dos pais
consentiam.
b) Jewish
Chronic Disease Hospital (Brooklin): 1963 – injetadas células tumorais em 22
pacientes anciãos, sem o consentimento;
c) Tuskegee Syphilis
Study (Tuskegee):1932 – 1972 (40 anos) – 600 homens negros. Objetivo,
determinar os efeitos do curso natural da sífilis quando não tratada. 399
portadores foram deixados sem tratamento e sem informação sobre seu estado de
saúde. Os demais 201 não possuíam a doença eram considerados grupo controle. Os
homens foram privados de tratamento mesmo depois da invenção da penicilina em
1940. Esse caso foi denunciado em 1972 e a pesquisa só parou por causa da
denúncia veinculada na revista norte-americana Washington Star. Depois desse caso uma comissão nomeada pelo
Departamento de Saúde relatou que o desenvolvimento científico não mais poderia
ser regulado apenas pela comunidade científica nem se sobrepor aos direitos
individuaos.
É importante
ressaltar que a comunidade científica acreditava no “darwinismo social” que
determinava a discriminação de raças e alegava que algumas raças eram
superiores a outras e, por isso, as raças inferiores “podiam” ser submetidas
aos experimentos em benefício da construção de parâmetros eficientes para a
saúde. Por isso, o conceito de dignidade humana não é um valor para todos os
humanos, o que permite a “tentação utilitarista” com o pretexto de promover um
bem futuro para a maioria, apesar de causar dano a uma minoria (que para eles
era insignificante, já que muitos não consideravam negros, idosos e deficientes
como pessoas).
3. Declaração de Helsinque (1964)
Adoção
de princípios ético-científicos na formulação de protocolos de pesquisas com
seres humanos, sendo que estas só poderiam ser conduzidas por cientistas
preparados. Reconhece o princípio da Autonomia do sujeito da pesquisa. Esse
documento foi atualizado 6 vezes até 2008 e, no Brasil foi a base para a
resolução 196/96 que tem um foco no controle social e foi aprovada pelo Conselho
Nacional de Saúde (CNS), juntamente com o Relatório Belmont (1974 – 1978),
apesar deste não ser considerado um documento internacional, apresenta
relevância mundial e bioética, pois, revela a pertinência de questões éticas no
financiamento das pesquisas. Esse documento acrescenta ao princípio da
autonomia outros dois princípios: o da beneficência e o da justiça, que mais
tarde se tornam os princípios da bioética Principialista.
Em 2012 a resolução 166/96 foi substituída
pela resolução 466/12 depois de uma revisão, porém, o objetivo principal da
resolução foi mantido: regulamentar a experimentação com seres humanos com base
na autonomia e no consentimento livre e esclarecido (TCLE). Algumas das
alterações apresentadas na sexta versão da declaração de Helsinque foram
acrescentadas na nova resolução. Questões como: assegurar aos participantes da
pesquisa o acesso aos melhores métodos identificados pelo estudo; o uso de
placebo aceitável desde que o risco de danos não seja considerado sério;
De acordo com Kottow (2009) O princípio da
Autonomia não pode ser confundido com exercício da autonomia, pois é preciso
considerar uma variedade de fatores envolvidos como: a capacidade de
discernimento e a vulnerabilidade da família e da pessoa envolvida com a
pesquisa. Hipoteticamente pode-se pensar no caso de uma mãe que depende da
internação do filho e recebe uma proposta para participar da pesquisa como
condição para conseguir a vaga ou da promessa de que uma determinada medicação
em estudo possa ser a cura para uma doença. Quem, numa situação de
vulnerabilidade não estaria com a autonomia comprometida diante de uma situação
como está?
[1] Texto elaborado
para palestra sobre Bioética para o curso da Pastoral Familiar em julho de
2015.
[2] Mestre em
Bioética pela PUCPR, Especialista em Ética e Educação pea FACSUL/Centro
Redentorista, Licenciada em Letras Português-Inglês (UTP), Bacharel em Teologia
(PUCPR) assessora da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Curitiba e membro do
Núcleo Arquidiocesano de Bioética (NAB).
[3] É importante destacar
que o médico do mundo de Hipócrates não era o mesmo que concebemos hoje na
sociedade ocidental. Eram aqueles que tratavam e curavam os enfermos com o
conhecimento empírico adquirido pela observação de sintomas e o diagnóstico se
baseava na ideia de humores. Não havia um médico com curso superior como se
concebe hoje. As pessoas aprendiam a lidar com as plantas e identificavam
alguns efeitos curativos, assim como os curandeiros.
[4]
Leia mais:
http://jus.com.br/artigos/23380/notas-criticas-sobre-o-tribunal-militar-internacional-de-nuremberg#ixzz3eApDJoJB.
[5] Embora hoje possa
parecer assustador avaliar pelo potencial de futuro, na época, foi um avanço
porque considerou a questão social e as perspectivas de recuperação, pois,
seria de fundamental importância garantir que a escolha teria bom resultado,
por isso, a perspectiva futura era considerada como uma garantia de sucesso na
definição de quem utilizaria o aparelho. Não poderia haver perdas.
[6]
Expressão
utilizada na época.
Parabéns Jaqueline!
ResponderExcluirmuito obrigada!
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