segunda-feira, 6 de março de 2017

As imagens ambivalentes e maniqueístas de Eva e da Virgem Maria atribuídas à Hester Prynne no livro “A letra escarlate”

Jaqueline Balthazar Silva

“- Aquela mulher lançou a vergonha sobre todas nós e devia morrer! Não há lei para isso? ... Há sim! Existe, quer nas Escrituras, quer nos nossos estatutos.” (Personagem do livro A letra Escarlate – Hawthorne).

“Se entre aquela multidão de Puritanos houvesse um Papista, ele encontraria por certo naquela mulher tão linda, mas tão estranha nos seu atavios e semblante, com uma criança ao colo, qualquer coisa que lhe faria lembrar a imagem da Divina Maternidade, que tantos ilustres pintores têm rivalizado entre si para bem reproduzir na tela; encontraria, sim, algo que lhe faria lembrar realmente- mas apenas pelo contraste- a sagrada imagem da maternidade, sem pecado, cujo filho, mais tarde, salvaria o mundo.” (HAWTHORNE, A letra Escarlate)

“Quis o Pai das misericórdias, que a encarnação fosse precedida pela aceitação daquela que era predestinada a ser Mãe de seu Filho, para que, assim como uma mulher (Eva) contribuiu para a morte, uma mulher também contribuísse para a vida” (Lumen Gentium 56).

Este artigo tem por objetivo fazer uma analogia entre o Antigo Testamento/ Inglaterra e o Novo Testamento/ Nova Inglaterra com relação ao livro A letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, e tentar mostrar a evolução de Hester na narrativa que, ao meu ver, passa por três imagens diferentes: a pecadora; a caridosa; e por fim a quase santa. Uma evolução que cresce na medida em que Hester vai se penitenciando e se purificando, até a sua redenção. Atribuindo-se assim a ela uma imagem maniqueísta que vai da imagem da Eva (pecadora) à Virgem Maria (redentora).
Essa imagem maniqueísta não tem sentido quando visto pelo prisma da a teologia; Maria é a nova Eva. Se uma mulher veio para dar a morte à humanidade, logo, outra mulher veio para dar a vida. Essas palavras são do documento da Igreja Católica conhecido como Lumen Gentium número 56. É um documento originado a partir do Concílio Vaticano II em 1962, busca levar à compreensão e à redenção de Eva por Maria.
            Hawthorne nos apresenta Hester, no primeiro capítulo da narrativa, como uma mulher condenada pelo pecado de adultério – a idéia do pecado original que remete à imagem de Eva na Bíblia, que não é, necessariamente um adultério, pois, o pecado do adultério seria uma incoerência para Eva pois não haveria como ela cometer o adultério. A idéia de pecado original vem do fato de que esta obra narra a história da primeira geração de colonizadores que chegou à Nova Inglaterra. Logo, o sentido de original aqui abordado nada tem em comum com o sentido atribuído por Santo Agostinho na tradição latina “que a utilizava para designar quer o pecado de Adão, quer o estado de pecado no qual a criança nasce.” (BUR, 18). Na obra de Hawthorne não é o mesmo do da Sagrada Escritura, tem mais a ver com o sentido de ter sido “o primeiro” que publicamente foi observado naquela sociedade. Não se está aqui querendo questionar o sentido do pecado original que, para a teologia moderna está totalmente fora do sentido da sexualidade. O pecado original, na Bíblia, foi, desse modo, não o pecado da carne mas, o desejo do homem querer se igualar a Deus. Ou ainda querer ser capaz de viver fora de Deus quando comeu do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal quando só a Deus cabe o julgamento.
            Mas, considerando-se que Hawthorne escreveu em meados de 1850, com uma visão retrospectiva de dois séculos, ou seja, a estória é narrada com uma visão da sociedade em meados de 1650. Nesse período a concepção de pecado original ainda estava ligada à teologia escolástica “Nela a questão do pecado original é exposta a partir de uma visão de mundo diretamente oposta à visão evolucionista” (BUR,7).
Voltando à narrativa, as primeiras famílias que chegaram na Nova Inglaterra eram famílias de Puritanos. Os Puritanos representavam uma parte conservadora da Igreja Católica que pretendia, como o próprio nome indica, purificar os valores da Igreja. Foram para a Nova Inglaterra com este propósito, fugindo da “onda” de protestantismos que se espalhava pela Europa com a Reforma protestante iniciada com Martinho Luthero.
 Hester, nesse contexto, então, representa a mulher que cometeu o primeiro pecado na nova terra e deveria ser punida para servir de exemplo para a sociedade puritana. Há na obra uma critica do autor em relação ao julgamento das mulheres que eram muito mais rigorosas que os homens, se dependesse delas Hester teria sido morta. Porém, no decorrer da narrativa, algumas vezes se descreve uma imagem da virgem santificada com o bebê no colo, como se estivesse sinalizando uma purificação vinda pelo nascimento da criança.
            Comparando-se a imagem da mulher no Antigo Testamento e no Novo Testamento verifica-se que no primeiro Eva representa o pecado original. É através da indução de Eva que Adão, o homem, comete o pecado. Isto, na visão da teologia escolástica e, na visão que Hawthorne quer demonstrar como uma representação da sociedade do séc. XVII. Em todo o Antigo Testamento a mulher vai carregar para sempre o estigma desse pecado original. É só no segundo Testamento, o Evangelho de Jesus Cristo, que se resgata a dignidade da mulher. São várias as passagens em que Jesus dá à mulher um lugar de destaque. Para esta análise este artigo procurará se ater à imagem de Maria, a mãe de Jesus. Maria como sendo uma mulher que aceita o chamado de Deus para ser a mãe do Salvador, extremamente forte, pois suportou a dor de ver seu próprio filho morrer na cruz por amor à humanidade. Considerando ainda que, para a sociedade de Maria, ela mesma seria tratada como uma adultera, pois encontrara-se grávida antes de casar-se com José. Aliás, o próprio José quis abandoná-la em segredo. Foi após a mensagem do anjo que ele mudou de ideia e casou-se com Maria. Ela sofreria o apedrejamento, castigo comum às mulheres que cometessem adultério.
            Mas não foi só isso. Maria como alguém que, ao ver a necessidade dos noivos nas Bodas, induz Jesus a realizar seu primeiro milagre. Maria representa a mulher como o sustentáculo da família. Não tem nada de submissa e obediente. Ela tem autonomia e é decidida. Esta imagem de Maria é retratada no Evangelho de João que foi o último evangelista a escrever. Por isso, quando escreveu seu Evangelho, em torno dos anos 90-100 d.C. “O lugar que Maria ocupa neste evangelho não é amplo, mas, sobretudo estratégico e sumamente significativo.Aparece no momento em que Jesus realiza seu primeiro “sinal”. Depois duma longa pausa, reaparece de novo no momento decisivo da cruz” (JACON,21).
            Hester, embora tenha cometido o adultério, o fez sem saber pois julgava que o marido havia morrido, mesmo assim aceitou sua punição. Ela foi ainda mais rigorosa consigo mesma, mais do que toda a sociedade Puritana, puniu-se a si mesma com rigor muito mais severo.
            Do orgulho daquela mulher nasce uma mulher forte e determinada. Uma mulher que sabia que não teria ninguém ao seu lado para socorrê-la, ou talvez até, não queria precisar de ninguém. Não só aceitou usar a letra escarlate mas a usou com um orgulho que era difícil de ser entendido. Bordou a Letra “A” com vontade, como que para se purificar de todo pecado. Foi forte e trabalhadora como Maria. Não que Maria houvesse pecado. Era uma mulher independente numa época em que todas as mulheres eram criadas para casar e ter filhos. Além disso, deveriam ser submissas aos seus esposos.
            Hester precisou trabalhar muito para prover o seu sustento e o sustento da filha. Nas horas vagas ainda arrumava tempo para ajudar aos necessitados que, ao invés de agradecê-la, ainda a insultavam e a desprezavam.
            Vejo na obra uma ideia de saída de um pecado para uma vida de resignação, penitência até quase a santificação de Hester. Há uma transcendência que é notada com o decorrer dos anos pela própria sociedade. E, através dessa transcendência que ocorreu primeiramente em Hester, levou também a sociedade a transcender com ela.
            Vinda da Europa, Hester trouxe consigo o pecado na própria carne. Porém, foi através deste pecado que ela conheceu a resignação e a penitência. Para purgar esse pecado ela fazia muita caridade e passou a ser vista com uma nova imagem: a imagem de uma mulher boa e caridosa. Ao tentar purgar sua dívida com a sociedade Hester foi gradativamente purificando-se a si mesma e criando a imagem de uma nova mulher na sociedade. “...aos olhos dos próprios homens que assim falavam, a letra escarlate ter o efeito de uma cruz, ao peito de uma freira. Dava-lhe uma espécie de caráter sagrado, que lhe permitia passear com segurança entre o perigo. Se caísse no meio de uma quadrilha de ladrões, de lá sairia sã e salva. Dizia-se até – e muitos acreditavam – que um índio atirara uma seta contra o símbolo; o projétil acertara, mas caíra no chão sem lhe fazer mal.” (HAWTHORNE,140). Chegando assim a se tornar quase um mito, uma lenda. Uma mulher capaz de, por seu próprio esforço, vencer as dificuldades e de criar Pearl, sua filha e símbolo vivo do seu pecado e a pérola que a traria para a luz. A letra escarlate em pessoa, conforme o próprio autor nos narra na voz do Governador e dos principais membros da Igreja e da Justiça. Pearl representa a primeira geração nascida na Nova Inglaterra e também é uma imagem de mulher mais decidida e batalhadora.
            A obra, então, mostra uma mulher pecadora que, no decorrer da narrativa, busca limpar e purificar seu pecado e enfrentar a sociedade de cabeça erguida. Hester representa toda uma nação que traz consigo os erros do passado nas terras europeias mas, que procura começar vida nova e acertar. A Nova Inglaterra não pode mais ser o reflexo da Velha. O novo tem que trazer uma nova visão das coisas. Precisa transcender. Parece que Hawthorne tenta mostrar que os puritanos eram extremamente rígidos e faz uma crítica ao julgamento precoce que faziam das pessoas – e, em especial, da mulher.
            Hester foi o bode expiatório de toda uma sociedade hipócrita. Só depois da morte de Dimmesdale passou a ser vista como aquela que assumiu seu pecado sozinha e como a única pessoa corajosa de toda a história. Então, a mulher, que era a origem de todos os pecados se transforma na mulher origem de toda força e coragem. É essa imagem nova que a Nova Inglaterra precisava assimilar e buscar para si. È essa força de mulher que vai levar a nação para frente.
            Para encerrar o raciocínio então, aquela Hester pecadora do início da narrativa que vem com a imagem de Eva do Antigo Testamento. Que é julgada e condenada, redime-se de seu pecado e, purificada, adquire então a imagem de uma Santa, a Virgem Maria do Novo Testamento.
            E o que é o Novo Testamento senão uma nova ideia de mundo? Um novo olhar para a humanidade. Todo pecado será perdoado a partir de uma conversão de vida. Hester converteu-se a tal ponto que parecia ser a mais puritana de todas as puritanas daquela sociedade. Ela sim sabia de fato o sentido de viver uma vida resignada porque viveu o pecado e pode purgá-lo. Ao final da narrativa as pessoas a procuravam para ouvir conselhos porque ela teve uma experiência de vida e era alguém que poderia, melhor do que ninguém, orientar e compreender moças e outras mulheres que estivessem precisando de algum conselho.
            Então, aquela mulher que foi a pecadora, transcendeu até o ponto de se tornar uma mulher respeitada e procurada para ajudar as pessoas que, por algum motivo, precisavam de conselhos. A conversão de sentimentos e de ações de Hester a tornaram uma nova mulher, purificada e dignificada por seus próprios atos. Pagou um alto preço para ser reintegrada ao convívio da comunidade, e preferiu viver com a filha, distante de todos que a condenaram.



Nenhum comentário:

Postar um comentário