segunda-feira, 6 de março de 2017

As imagens ambivalentes e maniqueístas de Eva e da Virgem Maria atribuídas à Hester Prynne no livro “A letra escarlate”

Jaqueline Balthazar Silva

“- Aquela mulher lançou a vergonha sobre todas nós e devia morrer! Não há lei para isso? ... Há sim! Existe, quer nas Escrituras, quer nos nossos estatutos.” (Personagem do livro A letra Escarlate – Hawthorne).

“Se entre aquela multidão de Puritanos houvesse um Papista, ele encontraria por certo naquela mulher tão linda, mas tão estranha nos seu atavios e semblante, com uma criança ao colo, qualquer coisa que lhe faria lembrar a imagem da Divina Maternidade, que tantos ilustres pintores têm rivalizado entre si para bem reproduzir na tela; encontraria, sim, algo que lhe faria lembrar realmente- mas apenas pelo contraste- a sagrada imagem da maternidade, sem pecado, cujo filho, mais tarde, salvaria o mundo.” (HAWTHORNE, A letra Escarlate)

“Quis o Pai das misericórdias, que a encarnação fosse precedida pela aceitação daquela que era predestinada a ser Mãe de seu Filho, para que, assim como uma mulher (Eva) contribuiu para a morte, uma mulher também contribuísse para a vida” (Lumen Gentium 56).

Este artigo tem por objetivo fazer uma analogia entre o Antigo Testamento/ Inglaterra e o Novo Testamento/ Nova Inglaterra com relação ao livro A letra Escarlate, de Nathaniel Hawthorne, e tentar mostrar a evolução de Hester na narrativa que, ao meu ver, passa por três imagens diferentes: a pecadora; a caridosa; e por fim a quase santa. Uma evolução que cresce na medida em que Hester vai se penitenciando e se purificando, até a sua redenção. Atribuindo-se assim a ela uma imagem maniqueísta que vai da imagem da Eva (pecadora) à Virgem Maria (redentora).
Essa imagem maniqueísta não tem sentido quando visto pelo prisma da a teologia; Maria é a nova Eva. Se uma mulher veio para dar a morte à humanidade, logo, outra mulher veio para dar a vida. Essas palavras são do documento da Igreja Católica conhecido como Lumen Gentium número 56. É um documento originado a partir do Concílio Vaticano II em 1962, busca levar à compreensão e à redenção de Eva por Maria.
            Hawthorne nos apresenta Hester, no primeiro capítulo da narrativa, como uma mulher condenada pelo pecado de adultério – a idéia do pecado original que remete à imagem de Eva na Bíblia, que não é, necessariamente um adultério, pois, o pecado do adultério seria uma incoerência para Eva pois não haveria como ela cometer o adultério. A idéia de pecado original vem do fato de que esta obra narra a história da primeira geração de colonizadores que chegou à Nova Inglaterra. Logo, o sentido de original aqui abordado nada tem em comum com o sentido atribuído por Santo Agostinho na tradição latina “que a utilizava para designar quer o pecado de Adão, quer o estado de pecado no qual a criança nasce.” (BUR, 18). Na obra de Hawthorne não é o mesmo do da Sagrada Escritura, tem mais a ver com o sentido de ter sido “o primeiro” que publicamente foi observado naquela sociedade. Não se está aqui querendo questionar o sentido do pecado original que, para a teologia moderna está totalmente fora do sentido da sexualidade. O pecado original, na Bíblia, foi, desse modo, não o pecado da carne mas, o desejo do homem querer se igualar a Deus. Ou ainda querer ser capaz de viver fora de Deus quando comeu do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal quando só a Deus cabe o julgamento.
            Mas, considerando-se que Hawthorne escreveu em meados de 1850, com uma visão retrospectiva de dois séculos, ou seja, a estória é narrada com uma visão da sociedade em meados de 1650. Nesse período a concepção de pecado original ainda estava ligada à teologia escolástica “Nela a questão do pecado original é exposta a partir de uma visão de mundo diretamente oposta à visão evolucionista” (BUR,7).
Voltando à narrativa, as primeiras famílias que chegaram na Nova Inglaterra eram famílias de Puritanos. Os Puritanos representavam uma parte conservadora da Igreja Católica que pretendia, como o próprio nome indica, purificar os valores da Igreja. Foram para a Nova Inglaterra com este propósito, fugindo da “onda” de protestantismos que se espalhava pela Europa com a Reforma protestante iniciada com Martinho Luthero.
 Hester, nesse contexto, então, representa a mulher que cometeu o primeiro pecado na nova terra e deveria ser punida para servir de exemplo para a sociedade puritana. Há na obra uma critica do autor em relação ao julgamento das mulheres que eram muito mais rigorosas que os homens, se dependesse delas Hester teria sido morta. Porém, no decorrer da narrativa, algumas vezes se descreve uma imagem da virgem santificada com o bebê no colo, como se estivesse sinalizando uma purificação vinda pelo nascimento da criança.
            Comparando-se a imagem da mulher no Antigo Testamento e no Novo Testamento verifica-se que no primeiro Eva representa o pecado original. É através da indução de Eva que Adão, o homem, comete o pecado. Isto, na visão da teologia escolástica e, na visão que Hawthorne quer demonstrar como uma representação da sociedade do séc. XVII. Em todo o Antigo Testamento a mulher vai carregar para sempre o estigma desse pecado original. É só no segundo Testamento, o Evangelho de Jesus Cristo, que se resgata a dignidade da mulher. São várias as passagens em que Jesus dá à mulher um lugar de destaque. Para esta análise este artigo procurará se ater à imagem de Maria, a mãe de Jesus. Maria como sendo uma mulher que aceita o chamado de Deus para ser a mãe do Salvador, extremamente forte, pois suportou a dor de ver seu próprio filho morrer na cruz por amor à humanidade. Considerando ainda que, para a sociedade de Maria, ela mesma seria tratada como uma adultera, pois encontrara-se grávida antes de casar-se com José. Aliás, o próprio José quis abandoná-la em segredo. Foi após a mensagem do anjo que ele mudou de ideia e casou-se com Maria. Ela sofreria o apedrejamento, castigo comum às mulheres que cometessem adultério.
            Mas não foi só isso. Maria como alguém que, ao ver a necessidade dos noivos nas Bodas, induz Jesus a realizar seu primeiro milagre. Maria representa a mulher como o sustentáculo da família. Não tem nada de submissa e obediente. Ela tem autonomia e é decidida. Esta imagem de Maria é retratada no Evangelho de João que foi o último evangelista a escrever. Por isso, quando escreveu seu Evangelho, em torno dos anos 90-100 d.C. “O lugar que Maria ocupa neste evangelho não é amplo, mas, sobretudo estratégico e sumamente significativo.Aparece no momento em que Jesus realiza seu primeiro “sinal”. Depois duma longa pausa, reaparece de novo no momento decisivo da cruz” (JACON,21).
            Hester, embora tenha cometido o adultério, o fez sem saber pois julgava que o marido havia morrido, mesmo assim aceitou sua punição. Ela foi ainda mais rigorosa consigo mesma, mais do que toda a sociedade Puritana, puniu-se a si mesma com rigor muito mais severo.
            Do orgulho daquela mulher nasce uma mulher forte e determinada. Uma mulher que sabia que não teria ninguém ao seu lado para socorrê-la, ou talvez até, não queria precisar de ninguém. Não só aceitou usar a letra escarlate mas a usou com um orgulho que era difícil de ser entendido. Bordou a Letra “A” com vontade, como que para se purificar de todo pecado. Foi forte e trabalhadora como Maria. Não que Maria houvesse pecado. Era uma mulher independente numa época em que todas as mulheres eram criadas para casar e ter filhos. Além disso, deveriam ser submissas aos seus esposos.
            Hester precisou trabalhar muito para prover o seu sustento e o sustento da filha. Nas horas vagas ainda arrumava tempo para ajudar aos necessitados que, ao invés de agradecê-la, ainda a insultavam e a desprezavam.
            Vejo na obra uma ideia de saída de um pecado para uma vida de resignação, penitência até quase a santificação de Hester. Há uma transcendência que é notada com o decorrer dos anos pela própria sociedade. E, através dessa transcendência que ocorreu primeiramente em Hester, levou também a sociedade a transcender com ela.
            Vinda da Europa, Hester trouxe consigo o pecado na própria carne. Porém, foi através deste pecado que ela conheceu a resignação e a penitência. Para purgar esse pecado ela fazia muita caridade e passou a ser vista com uma nova imagem: a imagem de uma mulher boa e caridosa. Ao tentar purgar sua dívida com a sociedade Hester foi gradativamente purificando-se a si mesma e criando a imagem de uma nova mulher na sociedade. “...aos olhos dos próprios homens que assim falavam, a letra escarlate ter o efeito de uma cruz, ao peito de uma freira. Dava-lhe uma espécie de caráter sagrado, que lhe permitia passear com segurança entre o perigo. Se caísse no meio de uma quadrilha de ladrões, de lá sairia sã e salva. Dizia-se até – e muitos acreditavam – que um índio atirara uma seta contra o símbolo; o projétil acertara, mas caíra no chão sem lhe fazer mal.” (HAWTHORNE,140). Chegando assim a se tornar quase um mito, uma lenda. Uma mulher capaz de, por seu próprio esforço, vencer as dificuldades e de criar Pearl, sua filha e símbolo vivo do seu pecado e a pérola que a traria para a luz. A letra escarlate em pessoa, conforme o próprio autor nos narra na voz do Governador e dos principais membros da Igreja e da Justiça. Pearl representa a primeira geração nascida na Nova Inglaterra e também é uma imagem de mulher mais decidida e batalhadora.
            A obra, então, mostra uma mulher pecadora que, no decorrer da narrativa, busca limpar e purificar seu pecado e enfrentar a sociedade de cabeça erguida. Hester representa toda uma nação que traz consigo os erros do passado nas terras europeias mas, que procura começar vida nova e acertar. A Nova Inglaterra não pode mais ser o reflexo da Velha. O novo tem que trazer uma nova visão das coisas. Precisa transcender. Parece que Hawthorne tenta mostrar que os puritanos eram extremamente rígidos e faz uma crítica ao julgamento precoce que faziam das pessoas – e, em especial, da mulher.
            Hester foi o bode expiatório de toda uma sociedade hipócrita. Só depois da morte de Dimmesdale passou a ser vista como aquela que assumiu seu pecado sozinha e como a única pessoa corajosa de toda a história. Então, a mulher, que era a origem de todos os pecados se transforma na mulher origem de toda força e coragem. É essa imagem nova que a Nova Inglaterra precisava assimilar e buscar para si. È essa força de mulher que vai levar a nação para frente.
            Para encerrar o raciocínio então, aquela Hester pecadora do início da narrativa que vem com a imagem de Eva do Antigo Testamento. Que é julgada e condenada, redime-se de seu pecado e, purificada, adquire então a imagem de uma Santa, a Virgem Maria do Novo Testamento.
            E o que é o Novo Testamento senão uma nova ideia de mundo? Um novo olhar para a humanidade. Todo pecado será perdoado a partir de uma conversão de vida. Hester converteu-se a tal ponto que parecia ser a mais puritana de todas as puritanas daquela sociedade. Ela sim sabia de fato o sentido de viver uma vida resignada porque viveu o pecado e pode purgá-lo. Ao final da narrativa as pessoas a procuravam para ouvir conselhos porque ela teve uma experiência de vida e era alguém que poderia, melhor do que ninguém, orientar e compreender moças e outras mulheres que estivessem precisando de algum conselho.
            Então, aquela mulher que foi a pecadora, transcendeu até o ponto de se tornar uma mulher respeitada e procurada para ajudar as pessoas que, por algum motivo, precisavam de conselhos. A conversão de sentimentos e de ações de Hester a tornaram uma nova mulher, purificada e dignificada por seus próprios atos. Pagou um alto preço para ser reintegrada ao convívio da comunidade, e preferiu viver com a filha, distante de todos que a condenaram.



sábado, 4 de março de 2017

AS GRANDES IMAGENS DO EVANGELHO DE SÃO JOÃO NO LIVRO JESUS DE NAZARÉ DE JOSEPH RATZINGER

AS GRANDES IMAGENS DO EVANGELHO DE SÃO JOÃO NO LIVRO
JESUS DE NAZARÉ DE JOSEPH RATZINGER

JAQUELINE BALTHAZAR SILVA



ÁGUA

            Origem da vida. Simboliza também a origem da humanidade. Pode aparecer de diversas formas para o homem e em diversos sentidos.

Fonte: água fresca que brota do interior da terra. Fonte é princípio em sua límpida e imaculada pureza. A fonte é o elemento criador, símbolo de fecundidade e maternidade.

Rio: grandes correntes são doadoras de vida (Nilo, Eufrates, Tigre). Em Israel o rio Jordão representa e oferece a vida ao país. No Batismo de Jesus a profundidade do rio representa também o perigo. Mergulhar na profundidade significa a morte e a emersão o renascimento.Por isso no batismo morremos para o pecado e renascemos em Cristo.

Mar: majestoso e admirável por sua potência; temido. É o espaço vital do homem. Deus marcou os limites da terra com o mar. O mar não deve ultrapassar os seus limites. A passagem pelo mar vermelho representa a redenção para o povo de Israel e uma ameaça fatal para os egípcios.
            No Batismo a passagem pelo mar vermelho é primeiramente representada como a morte, é um prenúncio da imagem do mistério da cruz. O homem, para renascer, precisa entrar com Cristo no mar vermelho; mergulhar com Ele na morte para só então alcançar uma nova vida com o ressuscitado.

Simbolismo histórico-religioso no Evangelho de João: percorre o evangelho do princípio ao fim.

Conversa com Nicodemos (cap. 3): o homem deve renascer da água e do espírito para entrar no Reino de Deus; Deve tornar-se outro.

Batismo – entrada na comunidade de Cristo; renascimento; analogia ao nascimento natural. Se o nascimento natural acontece a partir da fecundação masculina e concepção feminina, no batismo o duplo princípio se dá entre o espírito divino e a água.

O renascimento se dá pelo poder criados do Espírito de Deus. Espírito e água; céu e terra; Cristo e Igreja estão intimamente relacionados – assim acontece o renascimento. A água está no sacramento pela terra, pela Igreja que acolhe em si a criação e a representa.

Jesus no poço de Jacó (cap.4): Jesus promete à samaritana água viva. O simbolismo do poço representa a história da salvação do povo de Israel. Desde a revelação de Natanael Jesus já tinha sido revelado como o novo Jacó. Jacó é o antepassado que ofereceu o poço como elemento fundamental da vida. Porém o homem possui uma seda ainda maior do que da água da fonte. Procura uma vida para além da esfera biológica. A promessa da nova água corresponde à outra dimensão de vida. São João distingue bios de zoe, ou seja, enquanto a samaritana fala da água física Jesus fala da água do espírito (o pneuma) que gera a vida e sacia a sede mais profunda.

Capítulo 5: a água aparece só de passagem. A história do homem na piscina de Betsaida. Esse homem estava doente havia 38 anos. Acreditava que se entrasse na piscina ficaria curado. Jesus o cura pelo Seu poder. Jesus é a água viva.

Capítulo 7: Jesus está na festa dos Tabernáculos no rito solene de aspersão da água.

Capítulo 9: Jesus cura o cego de nascença. Para que o processo de cura se dê por inteiro é necessário que o cego se lave na piscina de Siloé. A palavra Siloé quer dizer “o enviado”. Só depois de lavado que ele alcança a visão. A representação da piscina quer dizer que Jesus é o enviado, por isso a razão autêntica do milagre. É em Jesus e por Jesus que o cego é purificado e só por Jesus recupera a visão. O capítulo nos revela a explicação do batismo que significa que Cristo nos concede a luz e nos permite ver por meio do sacramento (sinal).

Capítulo 13: última ceia – lava-pés. Revela a humildade de Jesus que se fez escravo dos seus discípulos; o lava-pés é purificador, torna os homens capazes de se sentar à mesa de Deus;

Na paixão: a água aparece de modo misterioso. O soldado perfura-lhe o lado e jorra água e sangue. Representa os dois sacramentos fundamentais da igreja: Batismo (água) e Eucaristia (sangue) que brotam do coração aberto de Cristo.

Na primeira Carta de João: imprime um rumo diferente: Jesus Cristo veio pela água e pelo sangue e pelo Espírito. Até então se entendia e reconhecia o batismo de Jesus como acontecimento de salvação. João polemiza ao transportar esse batismo para a sua morte na cruz. Assim água e sangue se unem pelo Espírito.


Festa dos tabernáculos (vs 37 – 39): Jesus levanta-se, no último dia da festa, e diz: quem tiver sede venha a mim e beba, do seu interior correrão correntes de água viva. O rito da festa consistia em se tirar a água da piscina de Siloé para levá-la ao Templo no sétimo dia. No sétimo dia os sacerdotes davam sete voltas em torno do altar com a água em um vaso dourado antes de fazer a aspersão. A festa tem origem nas religiões da natureza, era, antes, uma oração de súplica pela chuva. Mais tarde tornou-se uma recordação histórico-salvífica da água que Deus tinha dado aos judeus durante sua peregrinação pelo deserto.

Água que brota do rochedo: tema de esperança messiânica. Moisés tinha dado ao povo o pão do céu e a água do rochedo. Israel esperava o novo Moisés, o Messias. São Paulo escreve em sua primeira carta aos Coríntios que todos comeram e beberam o alimento e a bebida do espírito da rocha que era o próprio Cristo. Jesus se proclama o novo Moisés, a rocha viva que dá vida. Jesus se revela como a água viva que mata a sede profunda – sede de viva plena – saciada no interior do espírito.

Do seu corpo jorrarão torrentes de água viva. Várias interpretações foram feitas sobre o Corpo de quem a Escritura estaria falando. Uma corrente entende que todo homem que acredita se torna, ele mesmo essa fonte de água viva (tradição alexandrina de Orígenes – São Jerônimo e Agostinho); outra, a tradição da Ásia Menor entende que esse “corpo” é o próprio corpo de Cristo. Só ele é a fonte, a rocha viva da qual brota a água nova. Essa tradição está mais próxima de São João e tem como seguidores S. Justino, Sto Irineu, Sto Hipólito, S. Cipriano, Sto Efrem.

            A primeira interpretação é mais próxima dos Santos Padres e dos grandes exegetas do ponto de vista lingüístico, porém, no ponto de vista de conteúdo é mais próxima da segunda. Por isso é provável que João falasse do corpo de Cristo, embora não se exclua a possibilidade de estar implícito também aqueles que aderem a Ele porque tornam-se um com Ele. Ratzinger não exclui nem uma nem outra interpretação. Como João sempre foi ambíguo não se pode deixar de pensar que aqui também o tenha sido.


VIDEIRA e VINHO

            Assim como a água é um elemento fundamental para a vida, o trigo, o vinho e o azeite fazem parte da cultura do mediterrâneo. O pão é o fruto da terra o vinho alegra o coração e o azeite dá brilho ao rosto. Ao lado da água os dons da terra tornam-se sacramentais da Igreja. Os frutos da criação são sinais da ação histórica de Deus nos quais nos oferece sua proximidade.

            O pão é feito com a água e com o azeite, frutos da terra, mas, precisam do elemento fogo que representa o trabalho humano. O vinho corporiza a festa. Permite ao homem sentir a glória da criação. Por isso pertence aos rituais do sábado, da Páscoa, das núpcias – pressentimento de festa definitiva entre Deus e a humanidade.


O milagre de Caná

Qual o sentido de Jesus ter arranjado tamanha fartura de vinho? (520 litros)

Não se trata de luxo privado e sim de algo muito maior. É importante observar que o evangelista menciona que no terceiro dia houve uma boda em Cana da Galiléia. Essa informação é a chave de leitura para o acontecimento. No antigo testamento o terceiro dia representa a teofania: ex – Encontro de Deus e Israel no Sinai, prenúncio da teofania decisiva na história.  A ressurreição de Cristo é a irrupção definitiva de Deus sobre a terra.
Quando Jesus diz que a sua hora não chegou pode-se compreender que ele não atua por si só mas pela vontade do Pai. A glória de Jesus não começa ali, mas em conjunto com a cruz e a ressurreição. O milagre de Cana é uma antecipação da hora da glorificação. O acontecimento de Cana é um sinal de Deus sobre a superabundância. Representa a boda de Deus com o seu povo. Jesus é o noivo.
Para entendermos a profundidade cristológica das bodas de Cana precisamos ter presente que a água serve para os rituais de purificação, ao se transformar em vinho torna-se sinal de alegria. A purificação ritual permanece, porém, pelo vinho o dom de Deus oferece-se a nós e se torna na festa da alegria.

           Costuma-se fazer um paralelo entre as bodas de Caná e o mito de Dionísio, o deus que descobriu a videira. Filon de Alexandria deu um novo sentido à história. O verdadeiro doador do vinho é o logos divino. Ele é que nos dispensa a alegria, a doçura, o contentamento do verdadeiro vinho. Filon fixa essa teologia do logos histórico-salvificante em Melquisedec que ofereceu a Abraão pão e vinho. Ele nos oferece os dons essenciais para a existência humana (o logos aparece como o sacerdote de uma liturgia cósmica).

            É pouco provável que João tenha pensado nessa teologia, porém, o próprio Jesus quando explica sua missão chama a atenção para o salmo 110(109) que fala sobre o sacerdócio de Melquisedec (cf Mc 12,35-37). A Carta aos Hebreus também é muito próxima de João e, portanto, para João Jesus é o logos, o Senhor que nos dá o pão e o vinho.


Capítulo 15

            Jesus agarra-se no contexto dos discursos de despedida que estava na antiga tradição. Por isso é preciso considerar um trecho do Antigo Testamento para melhor compreender essa tradição. Em Isaías 5, 1-7 encontramos o cântico à videira, provavelmente tenha sido cantado na festa dos tabernáculos. A vinha era a imagem de uma noiva. O cântico começa falando do amigo que plantou uma videira de boa qualidade em um terreno muito fértil e fez de tudo o possível para seu crescimento. Na sequência o tom do canto fica triste. A vinha não produz frutos bons, apenas algumas uvas verdes intragáveis – isso quer dizer que a noiva foi infiel, desiludiu a confiança, a esperança e o amor que o amigo esperava. Logo o amigo abandona a vinha ao saque, atira a noiva para a condição de solteira que ela mesma se atribui.
            Explicando: a vinha é a noiva, a noiva é Israel – são os ali presentes diante dos quais Deus ofereceu na Tora o caminho correto. Deus fez tudo e como resposta recebeu a transgressão da lei e um regime ilegítimo. A história acaba com o abandono de Israel por Deus. O salmo 80 descreve Como Deus fez para salvá-los do Egito e depois os abandona para serem saqueados, é uma salmo de lamentação que se transforma em um pedido para que Deus cuide de sua vinha, que restaure-lhes, que o rosto do Senhor brilhe para eles para que sejam salvos (Sl 80, 16-20).
            Jesus vivia esse clima de mudanças históricas que aconteceram desde o exílio e via que, no fundo, a situação não havia mudado e isso falou ao seu coração. Em outra parábola contada pouco antes de sua paixão Jesus toma de Isaías a imagem da vinha, essa contada em Mc 12, 1-12. A vinha é a imagem de Israel representada nos rendeiros cujo dono partiu em uma viagem e que mesmo estando longe exige os frutos devidos. A história do sempre renovado esforço de Deus para com Israel é representada na sequência de servos que foram enviados em nome do Senhor para buscarem os frutos devidos. Isso nos remete a história dos profetas que foram enviados, seus sofrimentos e a inutilidade de seus esforços que, na narrativa dos rendeiros, acabam sendo assassinados. E, por fim, o proprietário envia seu próprio filho amado, o herdeiro e os rendeiros o matam para poderem ficar com a vinha para eles. O que o dono da vinha faz? Jesus retoma para o seu tempo e explica que assim como os profetas foram maltratadas e mortos ele também o será.
            Trazendo para o nosso tempo podemos perceber que a modernidade fez a mesma coisa, declarou Deus como morto e quis ser ela mesma o próprio Deus. Somos os senhores do mundo, não pertencemos a nenhum outro senhor que não nós mesmos. Abolimos Deus das nossas vidas, nós somos a medida das coisas. A vinha é nossa. O que acontece com o homem e com o mundo?

            Em Isaías não era possível ver a promessa, no salmo diante da ameaça o sofrimento transforma-se em oração. Assim foi a situação de Israel, é a situação da Igreja e de toda a humanidade. Vivemos na obscuridade das provações e clamamos por Deus. Jesus nos responde que precisamos cuidar da vinha porque do contrário o senhor virá tirá-la de você. Jesus diz que ele é o filho que será morto e que será a partir dele, morto e ressuscitado que Deus levantará no mundo uma nova construção, um novo Templo. A imagem da vinha será abandonada para surgir uma nova imagem, a construção viva d Deus. O poema da vinha não termina com a morte do filho, abre o horizonte para uma nova ação de Deus. Deus permanece fiel sempre, apesar da nossa infidelidade.

            A parábola da videira no discurso de despedida de Jesus permeia toda a história do pensamento e do discurso bíblico que leva a profunda verdade de Jesus: “Eu sou a verdadeira videira”. Jesus deixou-se plantar na terra pelo mistério da encarnação. No filho o próprio pai se tornou videira e essa videira não poderá ser arrancada nunca mais. Esse é o novo grande passo da história da salvação: na encarnação, morte e ressurreição Jesus realizou em si o Sim a tudo o que Deus prometeu.
           
            Desse modo, sendo ele a videira, une-se a nós e nós nos unimos a Ele. Unidos a ele estaremos unidos ao Pai. Embora a vinha não possa mais ser arrancada, saqueada, precisa de purificação, para isso somos chamados a estar em e a estar com o Filho na videira. A purificação visa o fruto: justiça, retidão pautadas na vontade e na palavra de Deus. A parábola da videira aparece no contexto da Última Ceia, depois da multiplicação dos pães. Jesus já havia falado do pão do céu – pré-significação do pão eucarístico. Permanecer na videira é perseverar apesar das dificuldades, o bom vinho nasce da perseverança. O fruto que devemos produzir é o amor e o amor procede de Deus, por isso, precisamos permanecer em Deus para mantermos a unidade.


PÃO

            Jesus se torna o pão para a vida, por isso não aceitou a tentação do demônio de transformar pedra em pão. Ele mesmo é o pão da vida. A multiplicação dos pães torna-se o sinal da missão messiânica de Jesus, mas torna-se também o seu caminho para a cruz.
            O contexto principal da multiplicação dos pães coloca o contraste entre Moisés e Jesus. Logo após a multiplicação e pouco antes de ser proclamado rei João apresenta a seguinte frase: “Esse é verdadeiramente o profeta que deve vir ao mundo” (Jo 6,14). Moisés tinha oferecido o maná, o pão do céu que alimentou o povo peregrino. Moisés falava com Deus e trazia aos homens a palavra de Deus, porém nem mesmo Moisés viu o rosto de Deus. Jesus é o único que viu a face de Deus porque ele é Deus. Por isso João coloca esse contraste entre Moisés e Jesus. Jesus fala a partir da visão do Pai. Moisés era o mediador entre Deus e os homens. Os dons de Moisés encontram em Cristo sua forma definitiva. Por isso o povo tinha em Moisés a autêntica distinção de Israel que era conhecer a vontade de Deus e o caminho correto para a vida. Assim o povo de Israel compreendia que o verdadeiro alimento que levava a Deus era a lei de Deus. Jesus queria mostrar aos judeus reunidos na sinagoga que a multiplicação dos pães era um sinal de salvação espiritual, porém o povo só entendeu como salvação material, assim como o maná, o pão é alimento terreno, o povo terá sempre fome de um algo a mais que está em outro plano. A Tora é o alimento que vem de Deus, mas só mostra as costas de Deus como mostrou a Moisés. Jesus, por outro lado, é o pão vivo descido do céu que dá vida ao mundo (Jo 6,33). Os ouvintes da sinagoga não compreenderam isso e Jesus precisou ser mais claro: “Eu sou o pão da vida, quem vem a mim nunca mais terá fome e quem acredita em mim nunca mais terá sede” (Jo 6, 35).
            A Lei tornou-se a própria pessoa de Cristo e por isso, nos alimentamos do próprio Deus vivo, o pão do céu. Deus se torna pão para nós primeiramente na encarnação do logos: a palavra se fez carne, torna-se um de nós e assim se torna acessível a nós. Jesus diz que sua carne é vida para o mundo.
            A teologia da encarnação e a teologia da cruz são inseparáveis. No discurso de Jesus sobre o pão vemos o movimento da encarnação ao caminho pascal que é orientado para o sacramento. João quer mostrar desde o prólogo que o fim último é a oblação do corpo de Jesus na cruz, Jesus torna-se homem e se doa em sacrifício no lugar dos animais que eram usados como cordeiro. Ele agora é o verdadeiro e único Cordeiro de Deus. No discurso sobre o pão da vida encarnação e Páscoa são praticamente a mesma coisa, são simultâneas assim como o sacramento da eucaristia é o maná que a humanidade aguarda, a eucaristia é o grande encontro do homem com Deus no qual o Senhor se dá em carne para que nos tornemos com ele espírito penetrados em Deus, uma nova humanidade. Esse alimento é a abertura para uma nova passagem: pela cruz antecipa-se uma nova existência da vida em Deus e com Deus.
            Ao final do discurso sobre o comer e beber a carne e o sangue está escrito: “O Espírito é que dá a vida, a carne não serve para nada”. Recordando as palavras de Paulo: o primeiro Adão era uma alma viva o último Adão tornou-se o Espírito que dá a vida (1Cor 15,45). Sublinha-se a perspectiva do sacramento: por meio da cruz e da transformação a carne se torna acessível ao processo de transformação cristológica e cósmica.

            Em João a narrativa do Domingo de Ramos está na perspectiva da Igreja universal que inclui judeus e gregos num só povo. No pão está todo o mistério da paixão: “Se o grão de trigo não for lançado à terra e não morrer, permanece só, mas, se morrer, produz muito fruto” (Jo 12,24). O pão pressupõe que a semente seja lançada à terra para que nasça a espiga. O pão terreno pode ser portador da presença de Cristo porque leva em si mesmo o mistério da paixão, pois une em si morte e ressurreição.
            Nosso Deus é real. Jesus viveu de fato num tempo e num espaço geográfico. Podemos encontrar relatos dessa existência real. Jesus morreu e ressuscitou de verdade, isso é histórico, não é mito.






PASTOR

            A imagem de Pastor traz a missão de Jesus através da história. Pastor era alguém instruído por Deus no Antigo Oriente (babilônico e assírio); apascentar representa a imagem de governar. O soberano justo é aquele que cuida dos fracos. Por isso a representação de Cristo como o bom Pastor é a representação do rei justo. Essa representação ilumina a realeza de Cristo.
            Já o Antigo Testamento utilizava-se dessa imagem em que o próprio Deus se apresenta como o pastor de Israel. Essa piedade é bem resumida no salmo 23. Ezequiel também representa a imagem do bom pastor quando diz que o próprio Deus buscará as suas ovelhas e as apascentará (Ez 34, 13. 15-16). Ao reunir-se à mesa com os pecadores Jesus conta a parábola das 99 ovelhas do curral e a única ovelha perdida. O bom pastor vai atrás da ovelha perdida e, ao encontrá-la, cheio de alegria a carrega em seus ombros. Jesus quer abrir os olhos de seus adversários para a passagem de Ezequiel e diz que Ele, Jesus, só faz aquilo que Deus, como verdadeiro pastor anunciou: procurar a ovelha perdida e trazê-la de volta para o rebanho.

            Há uma mudança surpreendente da imagem do pastor no livro de Zacarias 13,7 que diz que o pastor será ferido e as ovelhas dispersas (Mt 26,31). Essa passagem quer dizer que o pastor suporta a morte e introduz a última virada. É a imagem do redentor. Representa também a imagem do filho de Davi que derramará a compaixão e a oração quando olharem para o transpassado. “naquele dia haverá um grande pranto em Jerusalém tão forte como o pranto sobre Adadremon na planície de Magedon... Naquele dia correrá para a casa de Davi e sobre os habitantes de Jerusalém uma fonte para a purificação dos pecados e de toda a impureza” (Zc 12,10.11; 13,1).
            João liga a profecia de Zacarias a Jesus como fonte para a purificação de todos os pecados e impurezas.
            Interessante é perceber que o discurso sobre o pastor começa com outra imagem: a imagem da porta do redil das ovelhas. Aquele que não entrar pela porta é ladrão.O verdadeiro bom pastor passa através de Jesus que é a porta. Jesus pede a Pedro que apascente suas ovelhas – Jesus o chama também de porta e Pedro precisa responder 3 vezes que ama Jesus para poder transpassar a porta e ser ele também o pastor.

Discurso do Pastor – cap. 10

            Quatro conteúdos essenciais são evidenciados: O ladrão que vem para roubar, matar e destruir; o verdadeiro pastor não tira a vida mas a dá; O homem vive da Palavra de Deus, da verdade e do fato de ser amado por Deus. O homem precisa de Deus. Em João o sentido de Jesus como pastor é que Jesus é a palavra encarnada que oferece a vida na medida em que se dá a si mesmo. Ele é a vida. (Jo 1,4; 3,36; 11,25).

Segundo motivo do discurso do bom pastor

            É essencial o entendimento do pastor que dá a vida por suas ovelhas. A cruz é uma livre oblação. “Ninguém tira a minha vida, eu a dou livremente” (Jo 10,17). Jesus transforma um ato de violência exterior num ato de liberdade.

Terceiro motivo do discurso

            O reconhecimento recíproco entre o pastor e o seu rebanho. Ele chamas suas ovelhas pelo nome e as conduz. As ovelhas O seguem porque reconhecem sua voz. Dois verbos são importantes aqui: conhecer e pertencer, estão entrelaçados entre si. A reciprocidade de conhecerem porque pertencem a Ele e Ele conhecê-las porque lhes pertencem. Conhecer pressupõe um acolhimento interior, vai além da posse material.
           
            Ex. nenhum homem pertence a outro homem do modo como as coisas lhes pertencem. Os filhos não são propriedade dos pais; Os filhos pertencem aos pais mas o são também igualmente livres criaturas de Deus. Não pertencem a Deus como pose mas como responsabilidade. Pertencem a Deus na medida em que aceitam a liberdade do outro reciprocamente. Desse modo, também as ovelhas pertencem ao pastor não como coisas. Aí está a diferença entre o verdadeiro pastor e o ladrão. O verdadeiro pastor dá provas de seu amor e as quer livres. Pertencem a ele pelo conhecimento e reconhecimento. O bom pastor conduz ao Pai.

Último grande motivo do discurso


            A unidade. O bom pastor deve reunir suas ovelhas para estar em unidade com o Pai.O pastor, que é Deus, reúne a todos num único povo. Fala das outras ovelhas que estão em outro redil. A promessa de um só pastor e um só rebanho. “Fazei de todas as nações meus discípulos” (Mt 28,19). A missão universal: um só pastor. Embora seja uma imagem pastoril é perfeitamente compreensível para o mundo urbano. Ele deu a vida por nós, ele é a vida.
ENTRE A TRAIÇÃO E A NEGAÇÃO O AMOR


  

Jaqueline Balthazar Silva[1]

            O Evangelista João narra no capítulo 13 do seu Evangelho a passagem do lava-pés. É o único Evangelista que narra a última ceia sob outro foco, o do serviço. Depois de lavar os pés dos discípulos Jesus declara que será traído. Os discípulos ficam espantados, querem saber quem será que vai traí-lo. Logo a seguir Jesus diz a Judas para fazer logo o que tem para fazer. Os discípulos não percebem ali que se trata de da traição, imaginam que Judas iria executar uma tarefa que Jesus teria pedido, no evangelho João narra que uns pensavam que ele iria comprar alguma coisa para a ceia, outros que iria dar alguma coisa aos pobres. (Jo 13, 29).
            Tão logo Judas sai Jesus começa seu discurso de despedida. Nos versículo 31 e 32 Jesus fala de sua glorificação que nada mais é que a glorificação do Pai nas obras que Jesus realizou na vida pública. Fala também da glória futura, quando já tiver ressuscitado. Nele a glória do Pai se manifesta. Deus é glorificado no Jesus terreno e esse mesmo Jesus será glorificado em si mesmo quando vencer a morte.
            Encerrando a despedida Jesus diz que estará com os discípulos por pouco tempo e que o lugar para onde ele vai eles não poderão ir. Nesse momento começa a uma das mais belas passagens do Evangelista, o novo mandamento de Jesus para aqueles que vão ficar aqui. Jesus pede aos discípulos que se amem uns aos outros do mesmo modo como ele os tem amado. O mandamento do amor. É interessante que Jesus diz “como eu vos tenho  amado”, essa frase mostra a constância do amor de Jesus por nós. Um amor que sempre existiu, existe ainda hoje e continuará existindo sempre. Ao final Jesus diz que essa será a marca distintiva entre eles, o amor de uns para com os outros.
            Logo ao final desse novo mandamento Pedro pergunta a Jesus para onde Ele vai. Jesus diz que Pedro não poderá segui-lo. Pedro insiste e diz que daria a vida por Jesus, porque não poderia ir com Ele? Então Jesus responde que o galo não cantará até que Pedro o negue por três vezes. 
            João trabalha numa dinâmica em que o amor supera tudo. Percebe-se que há duas atitudes separadas pelo mandamento novo. Narra a traição e a negação, porém, entre uma e a outra está o mandamento do amor. O evangelista nos quer dizer que o amor supera ambas as atitudes. Vai mais longe. Coloca Judas e Pedro numa dinâmica de traição e negação para nos dizer que na vida hora agimos como Judas, horas como Pedro. Horas pecamos por gestos, horas por palavras. Faz parte do ser humano viver dessa maneira. Jesus quer nos mostrar que também entre nós as coisas serão dessa maneira e que precisamos amar como ele nos amou para superar a traição e a negação.
            Não é fácil, porém, é o que ele nos deixou. E, se quisermos pensar um pouco sobre como ele nos amou, podemos olhar para a cruz. Como diz aquela música “olhe pra cruz, foi por ti, porque te amo... ninguém te ama como eu”.
            Por isso meus amigos e minhas amigas, ser cristão não é tão simples assim. Falta muito para chegarmos à knosis[i] de Jesus é preciso muita fé e muito amor ao próximo. Amor incondicional, amor que não cobra e, especialmente, amor que supera a traição e a negação diária em nossas vidas.



                               
  


[1] Mestre em Bioética pela PUCPR, Especialista em Ética e Educação com ênfase em Teologia Moral pela FACSUL/Centro Redentorista, Licenciada em Letras Português-Inglês (UTP) e Bacharel em Teologia (PUCPR).



[i] Esvaziar-se de si. Aniquilar-se.

BIOÉTICA: Surgimento, complexidade e desafios para uma sociedade plural

BIOÉTICA:
Surgimento, complexidade e desafios para uma sociedade plural[1]

Jaqueline Balthazar Silva[2]

            Apesar da Bioética ser reconhecida como uma ciência nova, a reflexão bioética sempre existiu em todas as sociedades, embora nem sempre tenha sido assim chamada. Todas as sociedades e culturas têm suas reflexões éticas, até mesmo aquelas que não possuem uma língua escrita. Os códigos éticos são criados dentro das comunidades, e podem variar conforme a cultura. Isso significa dizer que não é necessário haver uma legislação escrita para que as comunidades tenham suas próprias normas de conduta, assim sendo, comunidades indígenas, aborígenes, autoctones possuem regras de convivência que devem ser respeitadas. Algumas dessas comunidades passam suas normas apenas por tradição oral.
            Mais tarde um pouco, encontramos também na filosofia grega que Hipócrates já havia criado um código de ética médico[3]. Por isso, a reflexão ética precede em muito o surgimento da bioética como uma ciência sistematizada.
           
1.    O Surgimento

A bioética surge num contexto de bastante questionamentos éticos em relação aos avanços científicos do início do século XX. Tem como palco principal o julgamento de Nuremberg.
O contexto se deu a partir do final da II Guerra Mundial em que os aliados vencedores decidiram, em uma conferência realizada na Inglaterra, perseguir e punir os vencidos. Foi a primeira vez que várias nações juntas realizam um julgamento em conjunto, no qual as pessoas foram julgadas por[4]:
Crimes de conspiração: execução de planos comuns destinados a tomar o poder e instituir um regime totalitário, com o objetivo deliberado de efetuar uma guerra de agressão;
Crimes contra a paz administrar, preparar, incitar e dar continuidade à guerra;
Crimes de Guerra - além de infrações aos costumes e leis de guerra, maus-tratos, homicídios, trabalhos forçados, dentre outros que não estejam ligados à exigências militares;
Crimes contra a humanidade, conhecido como holocausto, a primeira vez que acontece, sendo assim uma novidade no entendimento do direito internacional.
As quatro potências aliadas (EUA, França, Reino Unido e União Soviética) se reuniram em Londres (Inglaterra) e concordaram com a proposta de perseguir e punir os envolvidos.
É muito importante destacar que, apesar de ter sido de fundamental importância, o Tribunal de Nuremberg julgou os crimes apenas pelo ponto de vista dos vencedores, sendo que estes mesmos não foram submetidos a nenhum tipo de julgamento, como se os mesmos não tivessem também cometido crimes.

2.    Primeiro problema reconhecidamente bioético:

O problema de diálise no Seattle Artificial Kidney Center, em que apesar de haver 9 pacientes precisando do equipamento de diálise, só havia um aparelho. O Conflito se dá a partir do momento em que é preciso estabelecer critérios para definir quem teria a preferência, pois não seria possível a utilização para todos, o tratamento ainda estava sendo testado, as seguradoras não queriam assumir o pagamento de um tratamento experimental, por isso, surge, pela primeira vez um Comitê de Bioética, para avaliar e decidir os critérios para a utilização. Esse comitê era composto por 7 pessoas leigas, não médicos, mas filósofos, teólogos e representantes da sociedade civil que analisavam caso a caso de acordo com critérios de mérito social: sexo, idade, status conjugal, nº de dependentes, escolaridade, ocupação, potencial futuro[5]. A criação de um comitê abalou a relação médico-paciente.
            Em 1966 Henry Beecher abalou o mundo ao publicar um artigo no New England Journal of Medicine em que denunciou diversos crimes cometidos pelos EUA, que, muito antes do julgamento de Nuremberg já fazia experimentos com seres humanos, e, pior ainda, muito depois, continuava a fazer, o que não deixa de revelar a hipocrisia por traz daqueles que se julgavam superiores por que se consideravam “vencedores”, compreendendo a lógica de que a história é contada pelo prisma dos vencedores, o resto será esquecido.
Casos:
a)    Willowbrook State School (New York): 1956 – 1970 (14 anos) – escola para crianças com “retardo mental”.[6] Objetivo da experiência: verificar a eficácia da profilaxia contra a hepatite. Aproximadamente 700 crianças foram infectadas propositalmente com cepas do vírus, aos pais coube assinar um termo de consentimento que, caso não fosse assinado, as crianças não seriam admitidas na escola. Considerando que na época era muito difícil encontrar escolas para crianças especiais, a maioria dos pais consentiam.
b)    Jewish Chronic Disease Hospital (Brooklin): 1963 – injetadas células tumorais em 22 pacientes anciãos, sem o consentimento;
c)    Tuskegee Syphilis Study (Tuskegee):1932 – 1972 (40 anos) – 600 homens negros. Objetivo, determinar os efeitos do curso natural da sífilis quando não tratada. 399 portadores foram deixados sem tratamento e sem informação sobre seu estado de saúde. Os demais 201 não possuíam a doença eram considerados grupo controle. Os homens foram privados de tratamento mesmo depois da invenção da penicilina em 1940. Esse caso foi denunciado em 1972 e a pesquisa só parou por causa da denúncia veinculada na revista norte-americana Washington Star. Depois desse caso uma comissão nomeada pelo Departamento de Saúde relatou que o desenvolvimento científico não mais poderia ser regulado apenas pela comunidade científica nem se sobrepor aos direitos individuaos.
É importante ressaltar que a comunidade científica acreditava no “darwinismo social” que determinava a discriminação de raças e alegava que algumas raças eram superiores a outras e, por isso, as raças inferiores “podiam” ser submetidas aos experimentos em benefício da construção de parâmetros eficientes para a saúde. Por isso, o conceito de dignidade humana não é um valor para todos os humanos, o que permite a “tentação utilitarista” com o pretexto de promover um bem futuro para a maioria, apesar de causar dano a uma minoria (que para eles era insignificante, já que muitos não consideravam negros, idosos e deficientes como pessoas).

3.    Declaração de Helsinque (1964)

Adoção de princípios ético-científicos na formulação de protocolos de pesquisas com seres humanos, sendo que estas só poderiam ser conduzidas por cientistas preparados. Reconhece o princípio da Autonomia do sujeito da pesquisa. Esse documento foi atualizado 6 vezes até 2008 e, no Brasil foi a base para a resolução 196/96 que tem um foco no controle social e foi aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS), juntamente com o Relatório Belmont (1974 – 1978), apesar deste não ser considerado um documento internacional, apresenta relevância mundial e bioética, pois, revela a pertinência de questões éticas no financiamento das pesquisas. Esse documento acrescenta ao princípio da autonomia outros dois princípios: o da beneficência e o da justiça, que mais tarde se tornam os princípios da bioética Principialista.
      Em 2012 a resolução 166/96 foi substituída pela resolução 466/12 depois de uma revisão, porém, o objetivo principal da resolução foi mantido: regulamentar a experimentação com seres humanos com base na autonomia e no consentimento livre e esclarecido (TCLE). Algumas das alterações apresentadas na sexta versão da declaração de Helsinque foram acrescentadas na nova resolução. Questões como: assegurar aos participantes da pesquisa o acesso aos melhores métodos identificados pelo estudo; o uso de placebo aceitável desde que o risco de danos não seja considerado sério;
      De acordo com Kottow (2009) O princípio da Autonomia não pode ser confundido com exercício da autonomia, pois é preciso considerar uma variedade de fatores envolvidos como: a capacidade de discernimento e a vulnerabilidade da família e da pessoa envolvida com a pesquisa. Hipoteticamente pode-se pensar no caso de uma mãe que depende da internação do filho e recebe uma proposta para participar da pesquisa como condição para conseguir a vaga ou da promessa de que uma determinada medicação em estudo possa ser a cura para uma doença. Quem, numa situação de vulnerabilidade não estaria com a autonomia comprometida diante de uma situação como está?





[1] Texto elaborado para palestra sobre Bioética para o curso da Pastoral Familiar em julho de 2015.
[2] Mestre em Bioética pela PUCPR, Especialista em Ética e Educação pea FACSUL/Centro Redentorista, Licenciada em Letras Português-Inglês (UTP), Bacharel em Teologia (PUCPR) assessora da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Curitiba e membro do Núcleo Arquidiocesano de Bioética (NAB).
[3] É importante destacar que o médico do mundo de Hipócrates não era o mesmo que concebemos hoje na sociedade ocidental. Eram aqueles que tratavam e curavam os enfermos com o conhecimento empírico adquirido pela observação de sintomas e o diagnóstico se baseava na ideia de humores. Não havia um médico com curso superior como se concebe hoje. As pessoas aprendiam a lidar com as plantas e identificavam alguns efeitos curativos, assim como os curandeiros.
[4] Leia mais: http://jus.com.br/artigos/23380/notas-criticas-sobre-o-tribunal-militar-internacional-de-nuremberg#ixzz3eApDJoJB.
[5] Embora hoje possa parecer assustador avaliar pelo potencial de futuro, na época, foi um avanço porque considerou a questão social e as perspectivas de recuperação, pois, seria de fundamental importância garantir que a escolha teria bom resultado, por isso, a perspectiva futura era considerada como uma garantia de sucesso na definição de quem utilizaria o aparelho. Não poderia haver perdas.
[6] Expressão utilizada na época.

Depois da Dor vem a Redenção


Valeu a pena ter ficado em silêncio
Valeu a pena não ter perdido a paciência.
Valeu a pena calar a dor.

Tudo na vida deveria ser assim;
Agir com tolerância, ou
Até mesmo não agir.
Só o silêncio fala por si.
Quando a dor é profunda,
Quando a mágoa fere e sangra
Não adianta gritar ou espernear,
Só piora a dor e abre mais a ferida.
Depois de passado um certo tempo
Já se pode enxergar com mais racionalismo
Que a sabedoria ensina: a mansidão
É a maior forma de poder.
Pobres daqueles que se acham os Todo-poderosos...
Perdem seu poder em questão de segundos.
Pensam que ter poder é gritar e falar mais alto,
É humilhar e ofender o próximo,
É estar sempre no topo da hierarquia social.
Coitados!
Felizes são aqueles que se calam,
Que se deixam humilhar,
Que se permitem serem ofendidos sem revidar...
Estes têm a sabedoria dos grandes mestres e profetas
Não precisam ser letrados para entenderem
A simplicidade das coisas
É nessa simplicidade que mora a harmonia.
A paz não precisa de pesquisadores, cientistas
Nem de um grau de conhecimento aguçado.
A Paz se faz dentro de cada um e
A partir de cada um
Basta se ter um mínimo de amor ao próximo.
Quando se pensa sempre primeiramente no próximo
Sempre se estará instaurando a Paz.
Toda vez que se pensa no próximo antes de ofendê-lo
Se estará poupando e se estará promovendo a Paz.
Ainda que o próximo seja arrogante,
Ainda que o próximo seja opressor...
Reze por ele, peça a Deus que o perdoe...
Reze para que ele não seja punido por sua insensatez.
Ele é quem precisará mais de ser digno de pena,
Se você soube ouvir e calar você já deu a ele uma lição
Você mostrou a ele que você sabe o que é melhor pra você
E até mesmo para ele. Na sua simplicidade
Você tem o poder de promover a Paz...

Por isso, é sempre melhor calar.