quinta-feira, 18 de maio de 2017

A transformação


Paira no ar uma sensação angustiante de que estou pagando por todos os erros sozinha. Observo à minha volta e percebo que todos os culpados já foram penalizados e já pagaram pelos seus pecados, mas, parece que os meus nunca estão pagos. Daí a gente fica sabendo de pessoas que cumpriram suas penas e retomaram suas vidas.
          Quem é o juiz que me condena ad infinitum? Hoje entendi que sou eu mesma. Tal qual Hester Prynne adotei a Letra Escarlate e me penitenciei com tanto rigor como a própria personagem do livro.
          Li esse livro há uns treze anos e sempre fiquei impressionada com a força e a garra daquela mulher. E, de algum modo, ainda que sem perceber, impus para mim o mesmo castigo que ela recebeu. Fui rigorosa e altamente obcecada por minha penitência que sabotei todas as possibilidades de ser feliz novamente - parece que algo em mim estava sempre me dizendo que eu não tinha esse direito.

          Fui eu mesma quem executei a pena. Impus um sofrimento árduo e prolongado, como se estivesse estipulando uma pena de morte. Não haveria trégua nem refresco. Estava condenada à solidão, ao fracasso, ao cansaço e a morte. Porém, como tudo na vida pode dar uma reviravolta, acho que chegou o tempo da redenção e da quitação da dívida eterna.


          Segundo a mitologia grega a fênix, fenice é um pássaro que entra em auto-combustão e, depois de um tempo renasce das próprias cinzas. Hoje estou me sentindo uma fênix em processo de combustão. Talvez possa levar alguns dias para que eu comece o processo de renascimento. Sinto-me consumida por uma dor intensa, porém com uma sensação de que até o final haverá um alívio tão profundo como respirar ar puro, a plenos pulmões - um pulmão recém-nascido. As dores no corpo parecem fluir para um ponto estratégico que termina em uma extremidade qualquer e depois escorre pelo ralo.
          As dores de cabeça, estômago e rins parecem aliviar suave e lentamente. Há um aspecto diferente no ambiente. Estamos no período de outono e, lembro-me, então que no outono as folhas caem, animais trocam os pelos e as aves trocam as penas. No outono morre o velho para permitir que na primavera brote o novo. Dentro de mim, essa sensação me remete a essa mesma imagem. Eu sinto profundamente que estou morrendo para o velho para deixar nascer o novo em mim.


          Numa outra história de ficção muito conhecida - Harry Potter, há um mago muito poderoso conhecido por Dumbledore. Segundo esse mago as lágrimas de fênix tem poder curativo. Então, talvez eu passe por um período me banhando nas lágrimas da fênix até que o processo de renascimento inicie, não faço ideia de quanto tempo pode demorar. A parte boa é saber que, uma vez restaurados todos os sistemas - principalmente o emocional, estarei pronta para uma vida nova, como se estivesse me permitindo nascer de novo, dar um reset e reconfigurar as os sistemas.

          Há ainda outra história sobre a águia, que parece vir ao meu encontro nesse momento. Diz-se que as águias podem viver até 70 anos. Porém, para que ela consiga atingir essa idade, há um momento, na metade de sua vida, em que a águia precisa tomar uma difícil decisão. Ela deve decidir se vai morrer ou vai para um exílio longo. Nessa idade a águia está com as garras fracas, o bico torto e, se ela não quiser morrer ela sobe um morro bem alto e lá inicia-se um longo processo de transformação. Primeiro a águia bate o bico na pedra até que esse caia, isso faz com que outro bico novo possa crescer no lugar. Depois que o novo bico está pronto a águia arranca suas garras uma à uma. Novamente ela espera pacientemente até que nasçam as novas garras e, por fim, ela começa a arrancar todas as penas do corpo. Passado todo esse tempo a águia está totalmente transformada e pronta para viver a segunda metade de sua vida, linda, forte, majestosa e imponente.
          Hoje estou a caminho da meia idade, meio século. Sinto-me como essa águia que precisa subir o topo do morro. Estou pronta para arrancar o bico, as garras e as penas. Não sei quanto tempo pode demorar, mas sei que estou pronta pra começar o retiro.

          Estou me livrando de todos os resquícios que me prendem ao passado e fechando todas as portas que ficaram esquecidas e entreabertas. Estou buscando uma nova porta, uma nova saída. Um novo começo de vida, uma nova vida. Começar do zero mesmo, sem grandes expectativas. Estou pronta.

quarta-feira, 17 de maio de 2017

Por que demorei tanto?

Hoje me dei conta que esperei tempo demais e perdi o bonde, poderia ter decidido a mais tempo. O que me atrasou tanto? Uma promessa feita, tinha que honrá-la, mas poderia ter tentado antes, arriscado antes. Dava tempo de ser feliz. Dava tempo de refazer uma história que foi cortada pela raiz. Poderia ter dignificado aquele sentimento se tivesse buscado respostas mais cedo.
          Demorei demais. Cheguei atrasada. Poderia ter tido uma segunda chance. E o que é triste é que o desejo de saber notícias sempre existiu. Mas o respeito, a ética, os valores sempre freavam, sabiamente, o impulso. O que nos humaniza e nos diferencia dos animais é a capacidade de racionalizar e de controlar os impulsos.
          Hoje percebo que alguns impulsos podem ser intuições que tentam nos ajudar, porém, raciocinamos tanto e tanto que deixamos a graça passar. O espírito soprou e eu simplesmente ignorei. Não foi uma vez só, foram várias. Poderia ter corrigido o curso da minha própria história, mas, sem querer, deixei a oportunidade passar. 
          Escolhi estudar e buscar significado para a vida ajudando as pessoas, ensinando, atuando na pastoral, levando mensagem de amor fraterno e de esperança para comunidades carentes. Assumi o compromisso de lutar pelo empodeiramento das mulheres e das pessoas menos favorecidas. Escolhi a Pastoral da Saúde para falar de cidadania e de direito à saúde "para que todos tenham vida em abundância (Jo 10,10)".
          Levei essa mensagem a tanta gente e esqueci de cuidar de minha vida. Negligenciei o amor a mim mesma, negligenciei o amor que guardei no cofre. Não sabia que um dia isso poderia me sufocar e me tirar a tranquilidade. 
          Sim, descobri que um dia a chave do cofre apodrece e a ferrugem começa a vazar para fora. A emoção que ficou trancada está fraca, sem ar, adoeceu. Saiu se arrastando e pedindo socorro, sussurrando, quase que inaudível. Não consegue mais gritar!
          É, hoje entendi que poderia ter sido menos pragmática e covarde. Teria tido uma chance? Teria chegado a seu coração a tempo de reconquistar o seu amor? Teria dignificado o nosso amor? Nem sei ao certo se você um dia me amou de verdade. Pedi a Deus, muitas vezes para me orientar o meu caminho, o seu. Não poderia interferir quando acreditei que Deu ouviu as minhas preces, seria egoísmo da minha parte querer ser feliz com você.
          Você era importante para mim. Eu esperava tanto encontrar você no meio do caminho quando nossas vidas pudessem estar livres um para o outro, mas nunca tentei cruzar aquela linha tênue que traçamos. Cumpri minha promessa por muito mais tempo do que teria sido preciso? Tive medo? Tiveste medo, tu? Ou nunca pensaste em me procurar? 
          Costumo perguntar-me se você alguma vez quis saber como eu estava porque eu sempre quis saber de você. Sempre! Mas havia feito uma promessa. Sempre acreditei que o verdadeiro amor é aquele que preza pela felicidade do outro, ainda que para isso tenhamos que deixá-lo partir. Foi o que eu sempre fiz, cumpri minha promessa por amor. Nunca deixei de amar você. Só que não poderia quebrar aquela promessa. Nunca mais amei alguém como amei você. Nunca mais encontrei alguém como você, apesar de ter tido alguns relacionamentos que não foram tão significativos.
          Hoje me dei conta que poderia ter tentado um pouco mais cedo. Eu poderia ter estado lá naquele momento em que você precisou de mim mas eu não estava. Será que naquele momento difícil você também não pensou em mim? Não quis procurar-me? Mais uma vez o trem passou e eu me atrasei.
          Você foi a brisa suave numa vida de tempestade. Você foi a calmaria num mar turbulento. Você foi um suspiro de vida quando o ar estava pesado. Você foi minha paz num mundo rodeado de guerra.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Ferida Purulenta

Sabe aquela ferida que insiste em não curar? Passaram-se longos anos e a cicatriz ainda sangra, ainda incha, ainda doe? Aquela ferida que está lá dentro, que não dá pra ver, mas que você sente, dia após dia, doer cada vez mais. Aquela mágoa que você ficou remoendo, aquela angústia, aquela dúvida que permaneceu ali te fazendo pensar e pensar, insistentemente. Você não quer pensar mas aquele pensamento te persegue, te sufoca, te condena ao eterno sofrimento?

          Essa ferida purulenta está a ponto de vazar um pus fétido, de consistência densa e amarelada. A ferida está pronta pra ser apenas uma cicatriz, não vai mais doer, mas estará sempre ali para representar o que significou. Uma ferida negligenciada, escondida, neutralizada pelo tempo e pela podridão de uma moralidade doentia. Guardar a dor para não ter que por pra fora uma vida, uma história, um amor mal sucedido, um relacionamento partido. Não importa qual seja a motivação, o fato é que algumas pessoas costumam ignorar a dor e a mágoa e fingem que tudo está bem. O orgulho é maior do que a vontade de chorar, de gritar, de explodir - É sempre aquele autocontrole para manter tudo de acordo com o que se espera de uma pessoa equilibrada. Sim, mantemos o equilíbrio, agimos de acordo com as normas sociais. 
          Então, é melhor fazer tudo de modo que não sinta vergonha, que não dê vexame, não deixe os outros te olharem como se fosse um coitado. Não, não pode ter raiva, não pode se enfurecer, não pode demonstrar qualquer comportamento agressivo ou irracional. Foi ensinado que era errado por pra fora qualquer sentimento de dor ou agressividade.
          E a ferida vai se alastrando por dentro, porque, enquanto do lado externo tudo parece autocontrole, lá dentro estoura uma úlcera, explode uma dor muscular, um coração. Infelizmente, algumas dores emocionais se transformam, com o tempo, em dor física, e nem sempre são detectadas e, quando somatiza, dificilmente encontra-se a origem do estrago - muitas vezes desencadeado anos e anos lá atrás. Destrói as defesas, destrói as possibilidades de novos relacionamentos, sim, porque os traumas nos paralisam, nos bloqueiam e nos congelam.
          De repente não temos mais coragem de amar de novo porque um dia alguém nos decepcionou tanto e a tal ponto que o medo de sofrer se torna infinitamente maior que o medo de ser feliz novamente. O amor deixa de ser uma chance de recomeçar e se torna um pavor constante. A autossabotagem inconsciente destrói qualquer tentativa de sucesso.

          A dor emocional abre um buraco profundo e, quando o corpo começa a sentir os efeitos de tanto autocontrole, as doenças já se alojaram. Algumas ainda conseguem ser tratadas, porém, se não curar a fonte, tudo pode voltar ou até mesmo piorar muito. Não há escapatória. Enquanto não tratar e curar a dor emocional não haverá descanso e, possivelmente, em alguns casos vira depressão, quando não leva ao suicídio. 
          Fato é que há pessoas que resistem bravamente, superando todas as dores, ao menos aparentemente, mas, se a superação não for efetiva e verdadeira, a dor emocional pode nos derrubar e nos levar para um poço fundo, escuro e solitário. 
          Também é bem verdade que há muita gente que convive diariamente com alguém que está sofrendo calado e não consegue perceber nos olhar o que se passa - falta um mínimo de sensibilidade. Não temos tempo para olhar o outro. Estamos sempre muito ocupados, cuidando das nossas próprias vidas que nos tornamos egoístas.  Não percebemos os sinais, porque sempre existem sinais. As pessoas sempre dão pistas de que não estão bem - mas estamos presos na Matrix e não enxergamos (ou não queremos enxergar). É mais fácil fingir que está tudo bem, fingir que não vimos. Demonstrar empatia é para raros. Compaixão, então, quase inexiste. 
          E assim a vida passa, as pessoas vão e vêm, as vidas cruzam outros caminhos, as rotas são alteradas e, simplesmente aprendemos a viver com aquilo que restou. Guardamos todas as dores, mágoas e ressentimentos num baú, como se deletássemos tudo - mas não é assim, esse baú enche de feridas e, quando vaza o pus, pode ser tarde demais. Mas sempre deve haver esperança de que tudo pode ser diferente. Precisamos aprender a expurgar todo sofrimento.
          Essa ferida está pronta pra curar definitivamente. Maturou, teve o seu tempo de hibernação, agora precisa vazar. Deixe o seu organismo eliminar toda secreção que precisa ser limpa porque só depois de uma boa assepsia o corpo se recupera e estamos prontos para viver novas aventuras. As feridas nos fortalecem e nos preparam para a vida, fazem parte da vida, na verdade.
          Viver é sempre uma aventura magnífica e vale a pena toda experiência vivida, ainda que algumas tenham sido dolorosas...